Assexual, Agênero. | Como foi me descobrir trans através da assexualidade?

Escrito por Lori A. D. Santos | Revisado por Ídris

Hoje (29/01) é o Dia Nacional da Visibilidade Trans e, por isso, resolvi falar sobre algo que a algum tempinho tenho vontade de abordar, mas sempre recuo com uma certa insegurança: como foi me descobrir trans através da assexualidade.

Pode parecer estranho em um primeiro momento ler essa frase, afinal, que relação a assexualidade tem com a transgeneridade? Eu poderia falar sobre “como É ser uma pessoa trans e assexual”, mas escolhi falar sobre como me descobri um através do outro. Outro motivo que me leva a optar por não falar de como É ser ace e trans é o fato de que não me cabe falar por todas as pessoas que fazem parte desses dois recortes, posso apenas falar da minha própria vivência — que pode, ou não, ser semelhante a de outras pessoas. Bom, espero que de alguma forma esse texto faça sentido para alguém além de mim! 

Antes de qualquer coisa, acho que é necessário entendermos que gênero e sexualidade não são e não devem ser tratados de forma completamente segregada. Muitas vezes, na hora de explicar para pessoas cis-heterossexuais, acabamos nos prendendo a explicações ultrarresumidas e que reduzem essas experiências a bloquinhos totalmente separados e que não se comunicam. Erro nosso de presumir sempre que as pessoas vão ser burras e que precisamos simplificar em excesso. Quem realmente quer entender é capaz, independente da complexidade da explicação. 

Se você é LGBTQIAP+, independente da letrinha do acrônimo que faça parte, vai entender do que eu estou falando quando digo que se descobrir de alguma identidade dissidente da normatividade é abrir uma portinha mágica para começar a questionar mais um monte de coisa sobre a sua vida, seu passado, presente e futuro. Para mim, me descobrir assexual foi destrancar essa porta. Na verdade, para representar melhor o caos da situação, foi mais como destrancar a minha própria caixa de pandora e, aos poucos, começar a espiar dentro dela e descobrir uma infinitude de novas possibilidades de vida e de me colocar no mundo

Não vou dizer que tudo imediatamente fez sentido e que as coisas aconteceram instantaneamente, uma atrás da outra, porque estaria mentindo descaradamente. Foi tudo beeem lento! Um passo de cada vez, um ano de cada vez. 

Foi em algum momento de 2015, aos 14 anos, que eu descobri a palavra “assexual” e seu significado. Mas foi apenas no ano seguinte que aceitei em mim mesmo que realmente era isso que eu era e comecei uma série de outros processos de autodescoberta. Depois disso, levei dois anos para me entender arromântico e mais três anos para descobrir onde eu estava realmente dentro do espectro arromântico, mas isso é história para outro momento! Bom, em relação ao gênero — ou melhor, à falta de gênero — esse processo também foi lento. Posso dizer que minha assexualidade tanto me auxiliou muito como me atrapalhou em alguns momentos.

Enquanto estava no colégio, aquele universo pequeno, fechado e extremamente limitante — principalmente para nós que somos queer, eu fiz bastante uso da minha assexualidade para me convencer a mim mesmo de que eu me sentia deslocado da feminilidade (sou uma pessoa designada do sexo feminino ao nascer) por ser assexual. Como assim, Lori? Bom, digamos que eu não me sentia nem um ser humano, quem dirá uma mulher. Me sentia totalmente alheio a tudo que permeava a existência de um ser humano de 14-18 anos e ao que poderiam esperar de mim e jogava o peso todo na conta da assexualidade. Eu não sentia atração sexual porque sou assexual, eu não ia a festas porque sou assexual, eu não beijava pessoas porque sou assexual, eu não gostava de expor meu corpo porque eu sou assexual, eu sentia um incômodo imenso com meus peitos e com ter uma vagina porque eu sou assexual, eu odiava menstruar por ser assexual, eu desejava não ter nenhum tipo de genital ou característica sexual secundária por ser assexual, eu odiava ser visto por ser assexual, eu não suportava a ideia de alguém se atrair por mim por ser assexual, eu não me sentia mulher porque sou assexual, eu também não me sentia homem porque sou assexual, eu não me sentia uma pessoa porque sou assexual…

De certa forma, muitos itens dessa lista realmente me ocorreram por ser assexual, alguns eram injustamente atribuídos a assexualidade e outros eram em parte sobre isso também. Olhando para trás pode até dar um pouco da sensação de que eu estava me limitando e me impedindo de olhar o óbvio — e provavelmente estava mesmo, mas hoje consigo entender tudo isso como partes necessárias de um processo que me permitiu ir entendendo pouco a pouco a base real para todos esses incômodos que me faziam sentir tão distante de todas as pessoas ao meu redor. Uma imensa negação da humanidade. Um imenso “A”. A-ssexual, A-rrômantico, A-gênero. Aquela piadinha de ser uma pilha AAA. Às vezes até penso que me aproximo mais de uma pilha do que de muitos seres humanos cis-hetero-alossexuais.

Apesar de estar na internet desde criança e no Twitter a muito mais tempo do que eu deveria e gostaria de estar, só fui ter contato com a não binariedade tempos depois. Talvez eu já tivesse visto o termo antes, mas não dei atenção porque não deveria ser o momento certo de entrar em contato com ele. Foi só em 2018, no meio lá do combo caótico de copa + vestibular + eleições, que fui ter contato com esse termo, mas ainda assim pareceu distante para mim. Tive contato com a ideia de não binário através de uma thread bem simplista e que listava poucas identidades enibê e todas elas envolviam identificação com mais de um gênero. Não fez sentido para mim. A ideia era interessante e me deixou fascinado que existissem pessoas que se identificassem com vários gêneros ou fluissem entre eles, mas definitivamente não era para mim. Eu não me sentia nem um gênero, quem dirá dois ou mais.

Naquele momento me tornei um A de Aliado mesmo em relação a causa não binária e a causa trans — que eu já apoiava, mas passei a me informar melhor sobre e apoiar bem mais ativamente. Apoiei tanto, principalmente no que diz respeito aos pronomes neutros, que em dado momento resolvi experimentar usar eles junto aos já usados pronomes femininos. Gostei. Fez sentido e me dava um conforto que eu não sabia explicar de onde vinha. Claro, apenas como um grande Aliado cis!

O tempo foi passando, percebi que pronomes em geral me eram indiferentes. Podiam me chamar de Ela, Elu, Ile, Ele… Não me incomodava em nada e às vezes ouvir pronomes diferentes me era até confortável, principalmente o “masculino”. Fui gostando cada vez mais dos pequenos momentos que alguém se referia a mim “errado” no masculino.

Essa série de experimentações pronominais foi rolando até 2020, quando todes ficamos trancades em casa com nossas próprias famílias e mentes delirantes. Eu saí de uma realidade na qual eu não tinha tempo para nada para uma que eu tinha tempo até demais. Como bom ansioso, quando estou a sós com a minha mente, ela vai a todo tipo de lugar, então me dividi entre ocupar desesperadamente o tempo com atividades virtuais e pesquisas sobre assuntos diversos que apareciam para mim nas redes sociais e ficar pensando profundamente sobre tudo que chegava de informação para mim. Comecei a pesquisar mais sobre questões de gênero e sexualidade, teoria queer, transfeminismo, não-monogamia e todo tipo de coisa que a Igreja Católica abomina e manda queimar no inferno. Entrei para o Aroaceiros e dediquei uma parte considerável do meu tempo a falar sobre assexualidade e arromanticidade na internet. Voltei a escrever ficção através de contos que atravessavam as minhas vivências. Foi aí que tudo transbordou para fora da caixa de pandora e eu não pude mais fingir que não estava vendo.

Primeiro escrevi metade de um livro que nunca terminei, mas que tinha protagonismo aroace, depois resolvi que contos eram um começo melhor para minha carreira de escritor e passei a escrever contos de autodescoberta inspirados em músicas que eu achava que tinham a ver com isso. Veio um conto de autodescoberta arromântica seguido de um sobre heterossexualidade compulsória e, enfim, um sobre gênero. Esse aí causou um estrago. A começar pelo nome que escolhi, que era Meu/Eu, em referência à forma como as pessoas apresentam seus pronomes — “Elu/Delu” — e à ideia de que a protagonista encontrou o seu Eu. Eu planejei escrever uma personagem AFAB que se descobriria transmasc em uma “viagem interna”. Comecei a escrever e mudei de ideia logo depois, achando melhor fazer uma personagem não-binária. Foi depois disso que eu empaquei. Muita coisa ali foi eita atrás de eita quando eu comecei a perceber que estava me projetando muito naquela história. Mas como eu estava me projetando numa história de uma personagem trans se eu era apenas um cis que gostava de usar vários pronomes e apoiava a causa trans?

Demorei cerca de três meses para voltar e finalizar aquela história. O tempo para que eu lesse noite após noite sobre não-binariedade e encontrasse, em uma thread sem engajamento algum, a definição de agênero e começasse então a pesquisar mais sobre o que era ser agênero. Teve muito choro. Toda vez que eu lia sobre pessoas agênero eu chorava e pensava em como muita coisa estava fazendo sentido. Os pontinhos estavam se ligando e um monte de preocupações estavam vindo junto. Aquilo significava que eu era não-binário o que significava que eu era trans o que significava que, a partir daquele momento, eu carregaria nas costas bandeiras novas com pesos que eu não sabia se estava preparado para encarar, mas que não tinha mais volta.

Em pouco tempo fui me dando porradas e me forçando a engolir aquilo tudo ali a força, pois sentia que tinha perdido um tempo enorme da minha vida tentando ser algo que não fazia sentido para mim e mascarando aquilo de outras coisas que não necessariamente tinham a ver. Chorei, terminei o conto, lancei aquela bomba como quem não quer nada, recebi em meu Whatsapp mensagens de amigos surpresos de verem que eu era agênero e outros nem tanto. 

Assim como a minha protagonista viajou para preencher um sentimento vazio com um gênero-não-gênero, eu tive que fazer uma série de viagens para entender que era agênero, que era não-binário, que era trans e o que tudo aquilo significava. O começo dessa viagem foi retornando ao iniciozinho da minha própria autodescoberta assexual e como muitos aspectos daquela (a)ssexualidade se interseccionavam com aquele (a)gênero.

Eu não sentia atração sexual porque sou assexual. Eu não ia a festas porque eu não curtia o ambiente allo no qual as pessoas iam para ver e ser vistas mesmo. Eu não beijava pessoas porque sou aroace e me sinto desconfortável com a ideia. Eu não gostava de expor meu corpo porque sou agênero e detestava a sensação de ser visto como mulher, porém também não gostava de me sentir objeto de desejo sexual de alguém por ser assexual. Eu sentia um incômodo imenso com meus peitos e com ter uma vagina porque eu sou agênero e daria tudo para ser um corpo de expressão visual andrógina, além de não gostar da forma como a sociedade liga essas características ao sexo. Eu odiava menstruar por ser agênero e pelo povo (cis)mar em relacionar menstruação à mulheridade. Eu desejava não ter nenhum tipo de genital ou característica sexual secundária por desejar ser um corpo desgenerificado e dessexualizado. Eu odiava ser visto por odiar não poder representar visualmente quem eu era e como eu me sentia, ter que fazer um eterno cisplay. Eu não suportava a ideia de alguém se atrair por mim por ser assexual e porque sabia que as pessoas se atrairiam por uma figura feminina e isso me causava repulsa. Eu não me sentia nem homem, nem mulher porque sou agênero, mas ser assexual tem um peso imenso nessa sensação de deslocamento da ideia de gênero. Eu não me sentia uma pessoa porque sou assexual, mas passei a me sentir uma porque sou agênero. 

Leia mais:

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: